sexta-feira, 15 de março de 2024

Uma Fortaleza de Ruínas

Uma Fortaleza de Ruínas Não Michel de Certeau, não era só Nova York que não sabia envelhecer, Fortaleza também não sabe, tão pouco tem aprendido que não se inventaria um futuro demolindo o passado, deixando-o ruir pela ação omissa de quem apenas observa a cidade do topo das suas varandas egocêntricas e cujo campo de visão tomba apenas para um horizonte limitado de azul, enquanto nas ruas as cores são muitas, os entrelaçamentos infinitos pelas mãos de quem torna realidade os desejos exóticos do “céu”. No dia 5 de Março de 2024, fomos impactados, mas não surpreendidos, com a notícia de que o poder público municipal decidiu (após anos de negligência) demolir o histórico Edifício São Pedro, primeiramente Iracema Plaza, inaugurado em 1951 e cuja moderna arquitetura que se assemelha a de um navio, convidou em diferentes épocas de maresias, ricos e pobres para as suas confortáveis e espaçosas cabines. Como o primeiro prédio com mais de três andares na Praia de Iracema era um refúgio das elites que buscavam uma fantasia luxuosa para experienciar. Entre os serviços oferecidos pelo Hotel, um restaurante de nome Panela atraia visitantes ilustres para provar suas comidas internacionais. Foi após a década de 1970 quando deixou de oferecer atividade hoteleira, apenas comerciais e residencial, que foi rebatizado para o que hoje conhecemos: Edifício São Pedro. Mas foi também nesse ano que a falta de investimento atingiu o imponente projeto, resultando nos anos 2000 no esvaziamento dos sonhos de uma “Fortaleza bela”, bem como em propostas de tombamento e “revitalização”. Em uma destas, uma enorme torre de 95 metros cresceria das entranhas do São Pedro e recuperaria toda imponência que o presente lhe havia roubado. Todavia, como qualquer grande nau que navega pelas líquidas águas da modernidade, o Iracema Plaza/ Edifício São Pedro foi ao encontro dos icebergs de blasé, tombou, os botes salvaram a vida dos tripulantes, mas não há bote para um barco naufragando. O prédio ainda deverá ser torturado antes de ir ao chão no prazo de 90 dias, isto é, deverá ser derrubado aos poucos. Mesmo assim, sob a terra da Luz os vestigios das muitas vidas nas ruínas do Edifício São Pedro farão crescer uma outra cidade, que deverá ser regurgitada sempre que a sua inflamação vier a tona, sempre que lembrarmos que o direito à memória é para todos inclusive para os edifícios, praças, pontes e chafarizes, pois eles são "coisas", portanto vivas, pujantes, coabitando e existindo conosco nos caminhos da vida humana e urbana. Mas não só isso, como rastro, também são, como diria Walter Benjamim, a aparição de uma proximidade, das nossas próprias proximidades. Para: Edifício São Pedro, sua memória Jamais será esquecida. : Texto escrito por: Lucas Pinheiro Tenório Farias, graduando em Ciências Sociais (UFC) e bolsista FUNCAP do Programa de Pós Graduação em Letras (UFC).
Fonte Imagens: Site do Governo do Estado do Ceará Documentário: Lastro - Memórias do Edifício São Pedro

domingo, 2 de julho de 2023

PALESTRA: Guardiãs das memórias: uma experiência de extensão e pesquisa

O grupo de estudos, pesquisa e extensão da UFC @rastros.urbanos está com a exposição GUARDIÃS DAS MEMÓRIAS, em cartaz no @mauc, sob a curadoria da Profa. Cristina Maria @morganadasbrumas e de Alana Brandão @alanabmoura. Para garantir a acessibilidade visual ao público PcDV, a exposição conta com quatro peças táteis e QrCodes com audiodescrição, feitas em parceria com o projeto Fotografias Táteis @fotografiatatil do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Design, coordenado pelo Prof. Roberto Vieira, e com o Grupo de Legendagem e Audiodescrição- LEAD/ UECE @latavlead , coordenado pela Profa. Vera Santiago. Nas palavras das curadoras da exposição: “A proposta é transformar essa experiência imersiva e inclusiva em uma forma de interligar o Centro de Humanidades. Por isso, queremos divulgar o trabalho também em parceria com a @bchufc como uma forma de incentivar os leitores e pesquisadores do nosso Centro para que visitem e conheçam o nosso Museu de Arte.” – Dia 27/06 (terça-feira), às 15h, houve uma apresentação especial no canal @plurissaberes no YouTube, no Espaço de Cocriação Audiovisual da Biblioteca do Centro de Humanidades. A gravação ficou registrada: https://www.youtube.com/watch?v=z4UBbzDLqwM Fotografias: CHICO GUERRA @chicoguerrabra

terça-feira, 20 de junho de 2023

Resenha: Hibisco Roxo

Chimamanda Ngozi Adichie é uma escritora nigeriana reconhecida como uma das mais importantes autoras africanas da contemporaneidade. Adichie (2019) revela marcas da dominação ocidental ainda no fervilhar da imaginação de uma jovem criança quando aos 7 anos consumia e escrevia sob a base homogênea das leituras de livros infantis britânicos, fazendo-a criar personagens de olhos azuis que comiam maçãs, bebiam cerveja de gengibre, andavam sobre a neve que caía do céu e conversavam monotonias. Todavia, a sua realidade de mulher nigeriana era diferente daquilo que outrora escrevia, onde morava não havia neve, tão pouco se comia maçãs - eram mangas- e nunca se falava sobre o tempo, não havia necessidade. Mesmo assim, anos mais tarde ao fazer intercâmbio para estudar nos Estados Unidos causava espanto em sua nova colega de quarto por ao invés da “música tribal” ouvir Mariah Carey e saber utilizar um fogão. No seu romance Hibisco Roxo (2011), logo no início da trama podemos entender aquilo que a autora propunha no sentido de trazer uma outra perspectiva à cegueira branca que impede com que enxerguemos os outros (SARAMAGO, 2017) dentro de uma coletividade no mundo ocidental. A personagem principal, Kambili, uma jovem adolescente, começa a narrar a sua história a partir de quando os hibiscos do seu jardim eram de um vermelho chocante, ou melhor, quando eles enquanto coisas vivas (INGOLD, 2012) ainda não tinham percebido que a sua própria realidade começava a trincar, e se desmantelar tal qual “inúmeras bailarinas de cerâmica" (ADICHIE, 2011), remetendo em sua simplicidade factual o momento em que o riquíssimo patriarca e fervoroso religioso, Eugene, reconhecido por muitos como “omeloral”, atirara um missal no filho, o pequeno Jaja; bem como o desdobrar das transformaçoẽs sociais causadas por sucessivos golpes militares na Nigéria coadunada sobretudo, com a contínua sangria do colonialismo na língua e nos costumes. Tendo em vista o seu poder em fazer estremecer as estruturas da dominação, a arma questionadora da palavra se transformava em um perigo constante tanto para Kambili que buscava as respostas para suas inquietudes interrogativas lendo os olhos dos outros, através do que ela chamara de “língua dos olhos” (ADICHIE, 2011, p. 55) principalmente, os da sua umunna (família); quanto para os homens e mulheres que habitavam a Nigéria, um deles, Ade Coker, amigo pessoal da família Achike “um homem pequeno, rechonchudo e risonho” (ADICHIE, 2011) do editorial de Standart, fora preso, torturado e tempos depois morto com uma bomba em um pacote na frente de toda família pela ditadura militar após uma matéria publicada. “Mas o que nós, nigerianos, precisávamos não era de soldados para nos comandar; precisávamos de uma democracia renovada” (ADICHIE, 2011, p. 15), dizia fervorosamente Eugene, ou melhor, a própria Chimamanda em sua escrevivência. Ainda nessa perspectiva escrevivente, no decorrer do enredo a autora faz menção simbólica a um assasinato brutal ocorrido em 1995 pela então ditadura militar da Nigéria, liderada pelo tenente-general Sani Abacha: o enforcamento de Ken Saro-Wiwa, jornalista, produtor e ativista ambiental. No entanto, para narrar de maneira ainda mais cruel as repressões violentas a posição militar, o personagem de Adichie (2011), fora morto ainda de modo mais colérico, Nwankiti Ogechi, teve seu corpo dilacerado por balas num bosque em Minna, “Depois, jogaram ácido em seu corpo para fazer sua pele derreter, para matá-lo mesmo depois de eles já estar morto” (ADICHIE, 2011, p. 101), tentando apagar os rastros daquilo que um dia fora vivo. Todavia, segundo Didi-Huberman (2017), as coisas estão sempre sendo regurgitadas, escavadas, descascadas, descobertas de forma que a destruição dos seres, não significa que eles foram para outro lugar, mas sim, que ainda continuam (sobre)vivendo através das marcas deixadas no tempo e no lugar onde foram tecidas. Desse modo, com a ausência da palavra verbalizada, Kambili fazia dos olhos palavras pensadas, que, assim como os cânticos cristãos das missas do padre Benedict, ressoavam e escorriam por vezes negativamente em seu corpo físico, Um desses eventos se deu quando a sua mama (mãe) sofrera novamente outro aborto após um episódio de agressão física de Eugene. A jovem garota descrevera melancolicamente a cena: “Mama estava jogada em seu ombro como os sacos de juta cheio de arroz que os empregados da fábrica dele compravam aos montes na fronteira com o Benin” (ADICHIE, 2011, p. 18). Kambili nunca se recuperou por completo da fatídica cena, e por vezes via o vermelho sangue fresco escorrendo do poço visceral da mama misturar-se como a alma de seu irmão morto. Contudo, Eugene sempre culpava a esposa Beatrice pela morte do filho, a quem obrigava a rezar por perdão divino. Aliás, a prática da penitência no lar da família Achike, pressupunha muitas vezes água fervente derramada sobre os pés até que a pele se desgrude quase que completamente. Contudo, de outra ponta extrema da realidade de suas vidas, Kambili e Jaja, percebem durante a viagem a Nsukka que o mundo não é somente um lugar de sussurros, silêncios e continências religiosas, mas sobretudo, um lugar onde as pessoas habitam com as suas mais íntimas práticas, seus costumes e diferenças. Foi dentro da pequena casa de tia Ifeoma, juntos aos primos, Chima, Amaka e Obiora, onde os jovens irmãos começam a descobrir a si mesmos, seja atráves do contato com as flores do barulhento e misterioso jardim, a escassez de comida e água, os protestos dos estudantes na Universidade da Nigéria, a devoção aos deuses ancestrais do PapaNnukwu (avô), ou a paixão pulsante pelo padre Amadi. Cada um desses aconteceres levaram Kambili e Jaja a uma nova dimensão do próprio ser, trazendo a tona o que antes engoliam em segredo: a opressão no próprio lar. A história trazida por Chimamanda é um reflexo íntimo e sublime da realidade das práticas culturais da Nigéria, e principalmente de como a cultura ocidental apoiada nas suas convenções patriarcais tenta cercear a liberdade religiosa, linguística e das próprias instituições nigerianas, instaurando um cenário epistêmica. Contudo, os hibiscos roxos enquanto coisas (INGOLD, 2012) são vivos e passam a serem testemunhas dessa ação truculenta e dilacerante do poder hegemônico, ocidental. A chave para o entendimento da complexidade dessa leitura está na capacidade com que enxergamos os Hibiscos.

*Resenha escrita por Neila Leyelle da Costa Anchieta e Lucas Pinheiro Tenório Farias, bolsistas de iniciação científica do projeto "Rastros da Memória em narrativas literárias: Grafando recordações na literatura africana e brasileira", orientado pela professora Cristina Maria da Silva, e integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisas Rastros Urbanos - UFC.

REFERÊNCIAS 
ADICHIE, Chimamanda Ngozi.O perigo de uma história única.São Paulo: Companhia das Letras, 2019.  
ADICHIE, Chimamanda Ngozi.Hibisco Roxo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.  
DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo: Editora 34, 2017. 
INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, 18, 37, p. 25- 44, jun. 2012.  
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Companhia das letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 
1 - Hibisco Roxo: Fonte - Google imagens. 
2- Capa: Fonte - ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.7  
3- Chimamanda: Fonte - Google Imagens  

terça-feira, 13 de junho de 2023

Convite: Palestra "Guardiãs das Memórias nas Cidades: Uma Experiência Imersiva no Mauc"

Acessar as experiências de vida de mulheres por meio de suas fotografias e de seus traços visuais no tempo, a partir de um projeto de extensão e da criação de uma experiência imersiva no Museu de Arte da UFC. Nos arquivos e nos rastros de várias mulheres, percorremos resquícios de suas memórias, que não nos permitem necessariamente acessar a completude de suas vidas, mas nos vinculam ao que há de coletivo em suas biografias. Buscaremos percorrer suas existências a partir das imagens, dos lugares por onde passaram e o que delas restou em nós. Nesse sentido, convidamos a todos para a palestra, parte da programação da experiência imersiva, que acontecerá no MAUC dia 15 de junho das 14 horas às 17 horas com a professora Cristina Maria da Silva. A incrição para a palestra está disponivel no link https://mauc.ufc.br/pt/abertura-da-exposicao-guardias-das-memorias/. Haverá emissão de certificados.

sábado, 10 de junho de 2023

Experiência: "Guardiãs das Memórias"

A experiência imerciva "Guardiãs das memórias" em cartaz desde o dia 05 de junho de 2023 no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará e busca trazer aos visitantes o contato com a vida de mulheres acessadas por meio das fotografias, do bordado e os demais traços visuais ao longo de suas trajetórias. Para além de uma proposta de exposição, "Guardiãs das memórias" montado pelo Grupo de Estudos e Pesquisa Rastros Urbanos trará também palestras, oficinas e minicusos buscando refletir conjuntamente as memórias das mulheres e assim, a própria memória da cidade. A experiência imersiva tem a curadoria da Professora do programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará e coodernadora do grupo de estudos, Cristina Maria da Silva e de Alana Brandão Moura, bacharela e licenciada em Ciências Sociais pela UFC. Aberta até o dia 14 de julho de 2023 e a todos os públicos. Contato: instagram.com/rastros.urbanos rastrosurbanos@ufc.br.

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Resenha: Niketche: Uma história de Poligamia

Paulina Chiziane é uma contadora de estórias, como ela mesma se define, e foi a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, "Balada de Amor ao Vento" em 1990. Ao longo dos anos, a autora publicou mais nove romances, sendo reconhecida pelo Prémio José Craveirinha em 2003 pela obra “Niketche: Uma História de Poligamia (2002)”. Em 2021 obteve um marco inédito na história ao tornar-se a primeira mulher africana a ganhar o Prémio Camões e integrar oficialmente o patrimônio literário lusófono, sendo reconhecida internacionalmente. No mesmo ano é divulgado um documentário sobre sua vida e obra, chamado “Paulina Chiziane: do mar que nos separa a ponte que nos une”, celebrando sua história e gravado durante uma visita ao Brasil, o curta procura fortalecer as conexões entre o Brasil e Moçambique. As suas obras, assim como a sua biografia, são atravessadas pelo contexto histórico pós-independência de Moçambique, principalmente ao abordar criticamente temas recorrentes, como, por exemplo, o lugar da mulher na sociedade moçambicana, as tradições culturais, a pluralidade cultural e étnica do país, a poligamia e monogamia, sempre refletindo criticamente sobre aspectos da sociedade na qual está inserida. No livro Niketche: Uma História de Poligamia (2002), a autora utiliza uma linguagem lírica na qual a narração é feita em primeira pessoa pela personagem principal, Rami, de modo a criar um mergulho na subjetividade da personagem, e a partir das suas emoções e sentimentos dialogar sobre a posição da mulher na sociedade moçambicana. O livro pode ser dividido em três partes, na qual acompanhamos a trajetória de Rami na construção de sua “mulheridade adulta”, uma vez que o título do livro é uma referência à uma dança tradicional parte do rito de passagem da infância à adultidade de mulheres, representando o momento de consagração de sua maturidade. Este processo não é possível de ser executado individualmente, e que a protagonista não vivenciou em razão da colonização e do afastamento da família das tradições africanas ao cederem à religiosidade cristã. Sendo assim, como o próprio texto afirma, Rami é uma criança no corpo de uma mulher. No início da narrativa ela ainda não sabe nada sobre a vida, sobre o amor e sobre si mesma. A primeira parte do romance é marcada pela inquietação de Rami diante da inadequação do seu casamento aos moldes cristãos, mesmo seguindo todos os preceitos, ser casada e ter filhos, ela é atormentada pela ausência da figura paterna e matrimonial em seu lar. Rami sente-se mergulhada em angústias causadas pela sobrecarga das funções do lar, uma vez que Tony (esposo) é ausente, resta a ela prover aos filhos e executar uma jornada dupla no ambiente doméstico. Logo no início da narrativa é uma explosão que capta a atenção da personagem, o que a relembra da guerra de independência já finalizada, mas cuja memória ainda é presente para ela. Mas essa explosão, na realidade, é um acidente sofrido pelo filho, despertando nela questionamentos sobre a função do pai e o porquê da ausência do homem diante de suas responsabilidades. Durante esse primeiro momento, Rami deixa-se envolver em uma autoculpabilização gerado por baixa autoestima, ela passa a autodeterminar-se de modo negativo a fim de justificar os problemas causados pelo esposo e sua ausência, acha-se feia, mal vestida e nada feminina ao se ver no espelho. Um processo relativamente comum para mulheres que vivem em sistemas patriarcais de se culpar pela irresponsabilidade daquele que deveria ser companheiro de vida e parceiro de funções. A segunda parte da narrativa faz parte de uma investigação de Rami em torno dos motivos reais para a ausência do Tony no lar, envolvida em várias inquietações ela decide procurar onde o marido estaria passando o tempo. Envolvida na busca por respostas, Rami descobre que o marido partilha da poligâmica, como a grande parte dos homens moçambicanos, constituindo famílias com outras cinco mulheres. No primeiro momento, há o deslocamento da culpa - relacionada à ausência do marido - de si para aquelas outras mulheres com quem ele se relaciona, gerando uma rivalidade feminina e agressões físicas. Novamente o homem adulto tem a culpa e responsabilidade absorvida por outras figuras femininas, até que essas mulheres reconhecem a dor que partilham, pois todas sofrem com a ausência desse marido/pai. O contato entre essas mulheres plurais, de diversas etnias, permite a Rami entrar em contato com outros modos de pensar e analisar a realidade na qual vive. Ela percebe que mesmo na tradição poligâmica há regras e funções a serem exercidas pela figura masculina, as quais não estão sendo assistidas devidamente. Por exemplo, um homem só poderia ter novas esposas e filhos se possuísse condições financeiras de prover para o novo núcleo familiar. Este não é o caso dessas mulheres, jogadas ao acaso pelo companheiro e aparecendo somente para engravidá-las. A partir dessas trocas culturais, Rami é capaz de reconhecer as vantagens que possui sendo a “primeira” mulher, ou a esposa oficial registrada em cartório, pois o documento lhe garante direitos que as outras esposas não possuem. As esposas então são capazes de conceber o real problema que tem diante de si, e o Tony como responsável pelas mazelas sofridas por elas, mas de nada adianta esperar dele uma solução. Rami, como primeira esposa e resguardada minimamente pela lei, sente-se responsável por ajudá-las a desenvolver melhores condições de vida. Chegamos então à terceira parte da narrativa, o processo no qual podemos dizer que Rami vivencia sua experiência de amadurecimento ao procurar estimular a autonomia desse grupo de mulheres. Nesse trecho há uma ressignificação do casamento poligâmico e uma transmutação da situação, mulheres antes rivais pela atenção masculina tornam-se amigas no enfrentamento das dificuldades impostas pelo patriarcado. O que antes era um problema torna-se o ponto de partida para uma união feminina, através da qual Rami consegue desenvolver sua autonomia e buscar concretizar seus desejos independente da presença ou ausência de Tony. Ao conhecer essas outras mulheres e a realidade mais degradante na qual vivem, Rami consegue transformar sua posição de esposa legítima em uma tomada do poder daquele homem que falha a todas elas. A protagonista, envolta no desejo de livrar suas novas amigas de tamanho sofrimento, coloca para si e para elas o objetivo de conquistar suas independências financeiras, o que as possibilita exercer o poder definitivo de decidir estar ou não estar naquele casamento poligâmico. A questão não é mais a presença ou a ausência de Tony na vida dessas mulheres, mas sim o que elas são capazes de fazer para conquistar sua autonomia e escolher com quem e que tipo de relação desejam ter com seus parceiros. Niketche é uma história sobre a potência transformadora que a união feminina pode trazer efetivamente para a vida de mulheres submetidas ao patriarcado, vivendo situações de vulnerabilidade econômica, física e social. A dor gerada pela situação problemática em que se encontram no primeiro momento é o ponto de partida para o reconhecimento de que elas sofrem do mesmo mal, causado pelo patriarcalismo. Mas, diante do problema, elas encontram na união de mulheres conhecimentos, técnicas e possibilidades de imaginar uma outra realidade e reconstruí-la, e assim poder realizar sonhos muitas vezes esquecidos. Uma história sobre uma trajetória de maturidade feminina a fim de construir uma irmandade em busca de conquistar uma autonomia capaz de criar uma realidade mais prazerosa para todas as mulheres. História esta que também faz alusão à luta pela libertação de Moçambique e o fim da Guerra Civil em 1992, na qual havia a busca pela emancipação do Estado Nacional e a conquista da autonomia do povo. Nesta tessitura narrativa Chiziane movimenta vários elementos culturais a fim de discutir pela irmandade gerada pela prática poligâmica, qual o verdadeiro lugar da mulher na sociedade moçambicana, e mais ainda, se existe um lugar onde essas mulheres devam estar. Desta forma Chiziane ressignifica em sua escrevivência, isto é, se tomarmos a perspectiva de Conceição Evaristo (2009), a própria ideia de uma literatura feita apenas por meio de palavras, como assim questiona Foucault (1964), mas sobretudo, como um complexo e infinito diálogo com aquilo que pode e deve ser dito, trazendo para o centro do debate as vivências de diferentes personagens silenciadas em seus mais íntimos desejos pela perpetuação de um código patriarcal que nega por meio da linguagem a existência das suas sexualidades e desejos.

*Resenha escrita por Neila Leyelle da Costa Anchieta e Lucas Pinheiro Tenório Farias, bolsistas de iniciação científica do projeto "Rastros da Memória em narrativas literárias: Grafando recordações na literatura africana e brasileira", orientado pela professora Cristina Maria da Silva, e integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisas Rastros Urbanos - UFC.

REFERÊNCIAS 
CHIZIANE, Paulina. Niketche: Uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 
EVARISTO, Conceição. A escrevivência e seus subtextos. In: DUARTE, Constância Lima; NUNES, Isabella Rosado. Escrevivência a escrita de nós: Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2009, p. 27-46." 
FOUCAULT, Michel. Linguagem e Literatura. In: Machado, Roberto. Foucault a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 
SANTOS, Nuno Ferreira. Paulina Chiziane.2022. 1 fotografia. Disponível em: https://www.publico.pt/2022/05/27/culturaipsilon/entrevista/paulina-chiziane-momento-guerra-preto-branco-onde-fica-mulato-2007516.  

sexta-feira, 17 de março de 2023

Seleção Bolsa de Extensão

O Grupo de Estudos e Pesquisas Rastros Urbanos, coordenado pela Professora Cristina Maria da Silva, torna pública a seleção para bolsista do Projeto de Extensão intitulado "Fotobiografias: a Fortaleza que se encontra em acervos fotográficos pessoais", desenvolvido na Universidade Federal do Ceará. A seleção se dará através da análise do Histórico acadêmico, currículo lattes, carta de intenções e entrevista (a ser realizada via Google Meet, com a coordenadora do projeto, a data e o horário serão informados por e-mail). A documentação deve ser enviada para o e-mail: rastrosurbanos@ufc.br e o prazo para envio dos documentos será do dia 17 a 24 de março de 2023. É válido ressaltar ainda que o processo de indicação será realizado após as etapas de seleção, via SIGAA. Para mais informações sobre o processo seletivo entre em contato pelo e-mail indicado. ㅤ Fotografias: Acervo Rastros Urbanos